segunda-feira, 4 de março de 2013

Está um dia cinzento, chove ininterruptamente desde madrugada. Estou sentado no meu escritório, olhos no teclado e no monitor. Não sinto a chuva, apenas a oiço. Não sinto o frio que está lá fora, apenas o desconforto de um dia cinzento. Oiço um album de Laurie Anderson nas minhas colunas Celestion. Penso que não sou feliz. O que me falta, afinal? Na sexta-feira passada fui cumprir com o que acho ser a minha obrigação para com aqueles que não têm o que eu tenho e me deixa infeliz. Em Arroios, frente à igreja diariamente se alinham seres que nada têm. Todos com histórias de vida como a nossa. A nossa custa-nos tanto, por vezes, não é? Pergunto-me frequentemente como seria se não tivesse um teto, um lar. Se me visse privado das minhas colunas Celestion, de disfrutar da lareira com a minha família nestes dias frios. Privado de conviver com o meu filho e mulher... Continua a chover lá fora. Nesta sexta-feira não chovia, fazia frio. As refeições não chegaram para a rota. Alguns ficaram sem comer e contavam connosco. Custa-me não poder chegar a todo o lado.
Soube que três pessoas sem abrigo haviam morrido. Um morreu de frio e congelou sobre o colchão de cartões que constituíam a sua cama, o outro não me recordo porquê nem como. Não porque não me tenha importado mas a visão de alguém morrer congelado, na rua, sozinho ofuscou-me a capacidade de absorver toda a nformação... A outra morte foi a que mais me chocou. Era uma mulher forte de origem africana. Durante muito tempo não compreendi que não falava português pois não dizia uma única palavra, apenas sons mal articulados e sem forma reconhecível. Era imigrante. Imigrou em busca de uma vida melhor que a que tinha na sua terra natal, certamente. Em África as mulheres não têm vida fácil. O que encontrou foi uma terra nova na qual o único refúgio que encontrou estava nos pacotes tetrapack de vinho barato pois o pouco que conseguia sacar não dava para mais. Andava permanentemente embriagada. Não andamos todos? Uns pela alquimia de uma sociedade de consumo, outros por caírem no mais baixo da existência humana sem saída que não seja o esquecimento. Arranjava frequentemente problemas entre os seus pares, os sem-abrigo quero dizer, pois seus pares somos todos mas preferimos fechar os olhos. Assim não doi! Foi encontrada na rua despida e estrangulada, vítima de violação...
 
A notícia desta morte custou-me particularmente. Conhecia-a. A última vez que estive com ela fiz com que fosse levantada do banco onde colocamos as caixas térmicas das refeições. Sentou-se no chão, melhor, sentaram-na pois não se aguentava em pé, e demos-lhe a sua refeição. Acabou por se deitar no chão. Havia atingido o ponto mais baixo. Pobre mulher! Estendia-me a mão sem emitir uma palavra, suplicava por uma refeição que já lhe havia dado, os olhos inchados numa cara deformada pelo sofrimento e pela embriaguez. Dizia-lhe que já lhe havia dado a refeição e que não podia dar-lhe outra. Acabei por solicitar que me dessem a refeição que lhe tinha dado e que ela de forma persistente ignorava para que lha desse de novo. Podia ser que ela aceitasse e se consolasse. Mas não. Pergunto-me se por trás daquela súplica não estaria desesperadamente a pedir socorro, que a libetasse do sofrimento... não sei. Nunca o irei saber mas, hoje, neste dia de chuva, recordo-me dela com a compaixão que acho não ter tido quando precisou. peço-lhe desculpa mentalmente na esperança de que oiça e me perdoe por não ter sabido/querido/podido ajudá-la quando precisou. Grace era o seu nome. Teve uma morte que ninguém devia alguma vez suportar.
Repito para mim que faço o que posso, o que sei e acabo por chegar à conclusão que faço pouco e não sei nada!
 
Que todos os seres possam ser felizes e conhecer a causa da felicidade,
Possam todos ser livres do sofrimento e da causa do sofrimento,
Que nunca se separem da felicidade que é ausente de sofrimento,
Possam todos permanecer na incumensurável equanimidade que é livre de apego aos próximos e ódio aos outros!
 
Om Mani Padme Hung